7 de abril de 2010

A Cicatrização Social

A informação que coloquei no fórum Dança Desportiva sobre a iniciativa “Dança Solidária” mereceu um comentário de André Lopes que me suscitou alguma reflexão.

Trata-se de uma opinião aceitável, mas que ilustra na perfeição alguns mecanismos da mente humana, que todos usamos, de forma intuitiva e sem ter em conta o que revelam.

Diz o nosso amigo que a nossa iniciativa pode ser prejudicada por já muitas terem surgido com as mesmas intenções. Tem razão.

Todos nós usamos um mecanismo de cicatrização social idêntico ao da cicatrização física.

Em caso de lesão física acorrem imediatamente ao local afectado todos os meios de defesa do organismo, automaticamente mobilizados, e com uma intensidade que pode gerar aumento de temperatura – febre. O processo de cicatrização inicia-se de imediato, primeiro estancando hemorragias, depois cobrindo a parte afectada, e finalmente substituindo tecidos danificados.

Socialmente agimos da mesma forma: perante um grave acidente social, toda a gente, por impulso se sente motivada a “fazer qualquer coisa”, em socorro do tecido social lesionado. Pode instalar-se uma febre solidária, capaz de levar no imediato aos maiores sacrifícios e níveis de generosidade.

Passado pouco tempo, apenas os meios organizados de defesa ficam a cumprir a sua missão, a temperatura social arrefece, e o processo mental “Já demos”, mesmo por parte de quem nada fez ou deu, e se limitou a uma maior ou menor ligação emocional com os acontecimentos, acelera a cicatrização das emoções e o virar de atenções e preocupações para outros assuntos.

Todos temos a consciência (se e quando nos dispusermos a pensar nisso), que o muito que se tenha feito nada resolve e apenas mitiga um pouco das carências geradas. No entanto, o processo de cicatrização social já nos libertou dessa “lesão”, e a simples referência a ela começa a tornar-se incómoda.

É um processo que pode parecer duro e egoísta, mas, tal como a cicatrização física é vital para a saúde, a cicatrização social acaba por ser importante para a regeneração da normalidade social, e a preservação da saúde colectiva indispensável para poder reagir a qualquer nova agressão que aconteça – e acontece com frequência.

Tem, assim, um mérito acrescido uma acção generosa “fora de prazo”, ou seja, que não se limite a satisfazer impulsos e resolver problemas que estão na moda, mas que se preocupa com questões graves que apesar de terem passado de moda, inclusivamente na pressão mediática dos telejornais, estão muito longe de solucionadas. Por isso, embora entendendo as reservas de André Lopes não desistimos.

Já não concordo com a sugestão de mudarmos de objectivo, passando a tentar angariar fundos para a promoção da dança. Nem vou ao ponto de comparar a dimensão humana dos dois tipos de objectivos, apenas a constatação da falta de sentido da sugestão. A dança é uma arte que proporciona espectáculo, e, portanto, se promove a si própria. A melhor, ou talvez única medida de promoção da dança é… dançar.

O nosso amigo André não se apercebeu do essencial: esta iniciativa em prol de pessoas em dramáticas dificuldades é, no fundo, e na sua essência, uma iniciativa de promoção da dança.

Haverá maior forma de promover uma modalidade frequentemente criticada por ser vivida por gente tida por vaidosa e egocêntrica, do que mostrar que vemos mais que o nosso umbigo, e que somos capazes de nos unir e sacrificar por uma causa alheia?

Haverá melhor promoção da dança do que dançar, e bem, não pelas nossas classificações, mas porque podemos ser úteis a quem precisa?

Dia 9 de Maio vamos dançar. Com duplo prazer.

5 de abril de 2010

Receita para um Dançarino

Dum antigo livro de culinária que encontrei num alfarrabista da rua da Portas de Santo Antão retirei uma curiosa receita:

Receita para um dançarino de sucesso

Escolhe-se um jovem tenro e bem proporcionado, sem manchas nem sinais de deterioração.
Polvilha-se com pó de narciso, de ambos os lados, até ficar bem coberto todo em volta.
Vai a cozinhar em molho de treino, lenta e suavemente até ficar bem apurado. Se for preciso, ir adicionando mais molho.
Nunca acompanhar com arroz ou batata frita – seleccionar uma dançarina de dimensões e formas compatíveis, preparada segundo a mesma receita, e dispor harmoniosamente o conjunto no meio do prato.
Enfeitar com confit de lantejoula, e servir rodeado de muitas palmas.

Notas – Diversos cozinheiros usam receitas um pouco diferentes, mas os resultados não são tão bons.
Alguns não seleccionam o dançarino, cozinhando a eito. O resultado é um prato do tipo farta-brutos, sem apresentação nem harmonia. Há, até, quem tente cozinhar dançarinos muito maduros; é tempo perdido – aguentam os primeiros calores, mas a maioria, mal atinge o chamado ponto Open, desfaz-se rapidamente.
Outros cortam no pó de narciso. Não é um desastre, mas nunca se obtém a textura delicada e fofa que só o narciso assegura.
Há ainda quem poupe no molho de treino – resulta num prato deslavado, sensaborão, quase cozinha de tropa.
O único ingrediente eventualmente dispensável é o confit de lantejoula, pelo que é geralmente usado apenas na alta cozinha.
Não negligenciar o acompanhamento de palmas – um par de dançarinos, sozinho no meio do prato, é uma imagem desoladora, que não prestigia nem gratifica o trabalho do cozinheiro.


Mais "molho" em receita